Teclas, notas e letras

Jornal O Norte
Publicado em 03/01/2007 às 09:28.Atualizado em 15/11/2021 às 07:54.

Lúcia Pimentel Góes: da infância no interior recheada por brincadeiras e livros, para uma vida dedicada à literatura infantil e juvenil. Em entrevista a escritora fala sobre a importância do investimento na formação de educadores, a contribuição da literatura na recriação do imaginário e na construção do leitor crítico-analítico.





Jerúsia Arruda


Repórter



Ela nasceu em Amparo, em 1934, e cresceu em Vera Cruz, cidades do interior do estado de São Paulo. Na infância simples, brincando, lendo e sonhando à sombra de uma mangueira, descobriu logo cedo que os estudos são o melhor caminho para descobrir os mistérios da vida. Foi assim que se descobriu com vocação para contar histórias. Mas seriam necessárias mais de mil e uma noites para contar a história da escritora, pianista e professora Lúcia Pimentel Góes, que tem uma vida dedicada à literatura infantil inventando e reinventando histórias e, como ela mesma diz, sonhando que todos os pequenos leitores brasileiros e do mundo tenham o direito de ser crianças sadias, aprontadeiras como a Emília (do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato).



As primeiras teclas de sua vida foram as pretas e brancas do piano, que despertaram ainda na infância o amor pela música. Em 1957, se formou no Curso Superior de Piano, pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Em seguida, formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela universidade de São Paulo.



Professora Titular na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da Universidade de São Paulo, em suas andanças por muitas trilhas de letras, Lúcia escreve para o papel, para o rádio e para o teatro. Em 1999 publicou seu primeiro livro, Reinações de Michi e Lucita e, de lá pra cá, mais de uma centena de títulos descrevem sua carreira de autora premiada: vários APCA’s, incluindo por Conjunto de Obra em 1991, dois Jabuti, o Prêmio Poesia do 2º Cancioneiro Português para a Infância e Juventude do Instituto Piaget de Lisboa, o Pen Club de São Paulo, Fernando Chinaglia, o Bienal Câmara do Livro.



Em 1993, participou de quatro programas do ciclo No Balanço do Balaio, adaptando e contando estórias e três anos depois, dá um passo rumo à escrita eletrônica ao roteirizar cinco programas da série Sonhamundo, projeto desenvolvido junto à Área de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil, da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, transmitido pela rádio USP FM (93,7 Mhz): Carmen, O Carnaval dos Animais, Contos da Mamãe Gansa, Sherazade e Música Maneirista.



Foi presidente do CELIJU - Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil e de 1978 a 2000, coordenou os Seminários de LIJ, nas Bienais do Livro promovidas pela Câmara Brasileira do Livro. Depois de algum tempo, a pianista, advogada e mãe de três meninas e um menino decidiu voltar a estudar. Vieram então o mestrado, o doutorado e a Livre-Docência em Letras, depois o Pós-Doutorado em Semiótica e Comunicação. Enquanto a carreira acadêmica avançava, e se consolidava escritora, autora de 133 títulos – entre literatura infantil/juvenil, poesia, ensaios e ficção, com mais de 5,4 milhões de exemplares vendidos.



Entre suas principais obras estão Reinações de Míchi e Lucita (1969), O maravilhoso Sr. Grão de Café (1975), Bipe (1979), Dei com uma porta e... (1980), Zé Diferente (1981), A maior boca do mundo (1984), Dráuzio (1984), Dudu, amigo do mar (1987), entre outros.



Confira a entrevista concedida pela escritora à revista Páginas Abertas, edição número 23, da editora Paulus, em 2006.



Jornal O Norte de Minas - Como surgiu a vocação para a Literatura?


Lúcia Pimentel - Li os livros de Érico Veríssimo, depois os do Lobato, e essa paixão pelos autores, por grandes obras, me acompanha vida afora. Pequena, eu tinha cadernos que chamava de impressões. Ali anotava coisas engraçadas, causos, apelidos e assim por diante. Nunca mais parei de ler. Não adormeço sem ler romances, trabalhos, estudar algum um tema ou fazer pesquisa.



ON - Por falar nisso, como uma pesquisadora pioneira, como você, definiria a Literatura?


LP - Literatura para a juventude é palavra carregada de significado no mais alto grau possível, dirigida ou não para as crianças e jovens, mas que corresponda às suas necessidades. Assim, não excluo ou classifico os leitores, jovens ou crianças, por faixa etária. Sigo a colocação: leitor iniciante, leitor em processo, leitor fluente, leitor crítico. Acoplar a essa classificação as faixas de idade é pretender enquadrar em grupos, crianças, jovens e, assim por diante, como se classifica, por exemplo, por índices fixos, grãos de café, plantas, animais ou qualquer outra coisa. No ser humano não é assim. Seu desenvolvimento dependerá de inúmeros fatores, e os leitores não devem ser enquadrados nunca, muito menos em salas de aula.



ON - Qual a influência da Literatura na formação da mentalidade?


LP - A Literatura é a arte da palavra. Este é o sinal distintivo – quer oral, quer escrita, quer teatralizada, musicada etc. – por excelência do ser humano. Assim, a Arte da Palavra, ainda mais quando conjugada com tantas outras linguagens, é um meio para se conhecer a vida, a beleza do ser humano, em todas as suas manifestações. Através da Palavra Literária, o leitor recria a si próprio, o mundo, quer as suas origens, quer inventando o futuro.



ON - Ou seja, a Literatura não é um simples entretenimento?


LP - Uma primeira leitura pode sim ser entretenimento. Há obras que se pretendem simples entretenimento. Há, contudo, muitas outras que são arte. Assim, arte é magia, é representação simbólica da vida, do existir.



ON - O professor de hoje está preparado para o desafio de abrir o imaginário das crianças e jovens?


LP - Penso que um professor em sintonia com seu educar em sala de aula pode não possuir a leitura em sua dimensão de vida. Mas, se ao menos for comprometido com o seu estar em sala de aula e tiver sensibilidade, ele poderá descobrir e fazer seus alunos descobrirem a beleza, o calafrio, a alegria, o lúdico, o trágico, a emoção de se fazer descobertas. Mas não é nada fácil, não. Trabalho há 35 anos escrevendo, estudando, dando aulas, cursos, palestras e, apesar de o Brasil ter ilhas de excelência na educação; a maioria, o professor, prioritariamente, precisaria de reciclagem total em suas colocações, em seus automatismos. Por exemplo, o mundo editorial ou o mundo da divulgação inventou o livro paradidático. Isso não existe: a arte ou é ou não é. O livro paradidático é apenas um livro com um invólucro rarefeito que busca dourar ou enfeitar o produto a ser vendido, no caso, um livro. Literatura não tem como objetivo passar lições. Nesse caso não é arte.



ON - Resgatar a leitura dos clássicos contribuiria para a formação crítica e a vontade de ler?


LP - Certamente. Mas tudo vai depender de como esse resgate será feito. Só aceito adaptações de obras literárias se forem sob as formas que denomino resgates de Forma. Nesse caso, são recriações de obras ou de formas (poemas, contos e assim por diante). O autor do resgate recria, por sua vez, outra obra de arte. Pessoalmente, também gosto de escrever resgates, mas quero reiterar que a adaptação só é interessante quando para outra forma artística.



ON - E como fica o ensino da leitura através do texto literário?/


LP - Não penso que o ensino da literatura deva acontecer apenas através do texto literário. Podemos ler muitos textos-vida. E ler outro tanto de textos-textos. Literários ou não. Meu livro Olhar de Descoberta traz uma proposta de leitura. Agora, o que penso ser realmente urgente é haver um investimento maciço e intenso no ler dos professores de vários graus.



ON - A literatura infantil vem tendo um crescimento constante no mercado editorial. Você acredita que esse público esteja lendo mais que no passado?


LP - Se pensarmos em um passado remoto, já distante, penso que não. Mas também havia campos delimitados de leitores em países de terceiro mundo. Ou seja, naquele tempo lia-se muito, mas apenas os eleitos. Hoje se democratiza a leitura, o governo tem ações nesse sentido, mas ainda há muita exclusão. Outro aspecto é que talvez tenhamos mais leitores de leituras de entretenimento, contra a qual, aliás, não tenho nada contra e entendo até como necessária. O porém surge quando o leitor só consegue ler o entretenimento ou a adaptação. Quando falo sobre as várias faces da linguagem, não incluo a adaptação, pois não confio nela.



ON - A literatura é hoje bem trabalhada em sala de aula?


LP - Com exceções que, felizmente, multiplicam-se, sim. Porém, em termos de Brasil ainda há muito para ser feito. As autoridades deveriam investir no professor, oferecendo cursos, se possível, de um ano ou no mínimo de seis meses, por exemplo, de Leitura crítico-analítica de obras, aulas sobre Gêneros e Formas, sobre Literatura Oral ...



ON - Literatura Oral?


LP - Isso mesmo. A oralidade, tanto nos jogos infantis quanto nos poemas de contagem, é herança de arte dos tempos primevos. Os contos de fadas, ah! Quantos enganos, equívocos.



ON - Voltando à sala de aula, quais devem ser os pontos fundamentais na escolha do livro de literatura a ser trabalhado em sala?


LP - Os livros devem atender a um planejamento de leitura preparado pelo professor, que poderá oferecer o mesmo livro para a classe toda, caso pretenda trabalhar conteúdos ou mesmo a leitura analítico-crítica de determinada obra, pois conhece os benefícios que obterá, mas o que posso dizer é que, na maioria das vezes, o professor deve oferecer uma escolha múltipla de várias obras.



ON - Já que falamos na necessidade de se investir na formação dos educadores, quais as competências necessárias para um bom professor?


LP - Em primeiro lugar, preparar-se sempre mais. Em segundo lugar, preparar a aula. Não se entra em sala de aula para repetir, ano após ano, a mesma coisa que, muitas vezes, não é de bom nível. Muitos educadores gostariam de passar por reciclagens contínuas, porém, os encargos que possuem não permitem que isso aconteça.



ON - Além dessa necessidade de se investir nos educadores, o que recomenda para a evolução da educação no país?


LP - Além da oferta de livros, que alguns programas governamentais estão possibilitando, penso que a presença de especialistas, via TV, em horário favorável, respondendo a perguntas da população, mesas-redondas com colocações ou expondo questões progressivas e essenciais, seria um auxílio.



ON - Muitos estudantes, professores e pesquisadores a vêem como uma referência.


LP - Não me vejo como referência. Apenas faço tudo com entrega e amor. E estudo sempre. Para mim, o estudo se tornou algo bom, gostoso e alegre. A alegria que está presente quando aprendo junto com os meus alunos sobre suas dificuldades e procuro passar sempre um conteúdo que tem valor. Vale por si, vale para o outro e é valioso para mim. Então valerá para todos. O tempero disso tudo? Amor.






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