As Faculdades Santo Agostinho realizam no próximo dia 04 (domingo) a prova do 1º Processo Seletivo 2008. A professora de Língua Portuguesa Nely Rachel comenta as duas obras indicadas pela instituição para o vestibular: Maíra, de Darcy Ribeiro, e Menino de Engenho, de José Lins do Rego.
MAÍRA, DARCY RIBEIRO
O romance Maíra, do montes-clarense e cidadão do mundo, Darcy Ribeiro, publicado entre seus clássicos da etnologia e da antropologia da civilização, requer leitura e análise diferenciadas, porque não se trata de um livro etnográfico, mas sim de uma reconstituição literária, ficcionalmente expressiva de centenas de povos que compõem o Brasil indígena.
Nele o romancista e não o antropólogo tece palavras e mistura mitos, contos e lendas de povos indígenas, com quem conviveu durante muitos anos, sem nenhuma intenção de apresentar verdade única ou função utilitária.
Com edições brasileiras, portuguesa, italiana, alemã, inglesa, francesa, espanhola, mexicana, polonesa, hebraica e húngara, Maíra passou por três processos de escritura.
A primeira versão se deu durante o exílio do autor no Uruguai e, conforme ele próprio afirma, “por razões terapêuticas (...) estava extenuado pelo esforço de escrever o primeiro texto de minhas teorias antropológicas: O processo civilizatório. Quase perdi o senso”. Sobrecarregado e estafado pelo esforço intelectual, Darcy é proibido por um médico de continuar O processo Civilizatório e instruído a procurar um local para repousar. Instala-se em casa de uma senhora italiana onde, de repente, começa a escrever Maíra, como algo preexistente dentro dele.
A segunda versão, já no Brasil, em 1969, foi escrita numa prisão “para ter com quem conviver”, pois achava-se proibido de falar com as pessoas que por ali circulavam.
A terceira e última versão foi feita em seu segundo exílio, em Lima. Sem quaisquer anotações das versões anteriores, Darcy reescreve Maíra e o publica em 1976.
Vinte após, a obra ganha edição comemorativa e, no prefácio, o autor confessa não se sentir no exílio, enquanto a escrevia, mas em pura liberdade, pois estava “na Amazônia, com meus índios. Vivia na aldeia, convivendo com meu povo silvícola, recordando episódios, conversas, observações, milhares delas (...) quem escrevia, ali, era o jovem de vinte e poucos anos que eu fora, desse modo revivido quase carnalmente. Nunca escrevi nada com tanto sentimento de participação nos episódios...”
O autor ressalta, também, que, na versão definitiva, ele descobrira que a estrutura de Maíra, era a da missa católica e tudo reescreveu com essa intencionalidade.
Basta-nos conferir a divisão da obra em quatro partes, cujos títulos - Antífona, Homilia, Canon, Corpus - incorporam a linguagem religiosa que percorre a narrativa: orações, ladainhas, textos bíblicos sob a forma de paródias, como no capítulo “Armagedon”; cânticos, textos em latim, trechos transcritos da bíblia, como o que aparece em “O Vômito”, recitado pelo pastor Bob; paródias de orações cristãs, em que Jesus Cristo aparece lado a lado com o Deus-Pai, Maíra-Monan e com Deus-Filho, Maíra-Coraci, nas angustiadas rezas de Isaías.
É o próprio autor quem nos dá testemunho do tema desse romance: “Vira bem que o tema verdadeiro de Maíra era a morte de Deus, que morria porque o mundo mairum estava condenado, não tinha salvação. Isso me permitiu escrever um capítulo poético em que o próprio Deus, perplexo, se lamenta e se pergunta que Deus é ele, e qual será seu destino, com o desaparecimento do seu povo. Ele já era órfão de seus filhos”.
É dessa forma que Maíra é concebido: um romance que reconstitui literariamente a etnologia do povo indígena, “ensinando” ao leitor seu modo de ser, de viver e de se organizar e o que é mais inovador nessa narrativa ficcional é a argúcia e engenhosidade do autor em retomar e compaginar a metodologia de dezenas de povos indígenas para representá-la unificada e em contraste com a visão cristã do mundo.
Nas palavras de Antônio Cândido, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, “Maíra foi produzido por um homem que conhece a fundo a sociedade do índio e a sociedade do branco, que sabe qual é o resultado catastrófico do seu encontro, mas que supera a tentação de mostrar a este como espetáculo, porque o seu alvo é uma visão em profundidade. (...) penetra fundo no universo do índio, esposando o seu modo de ver e de sentir, falando a partir de sua maneira de falar, numa contaminação fecunda entre observador e coisa observadora, que lhe permite, por exemplo, descrever a vida do corpo com uma naturalidade que pareceria grosseira sem essa compenetração. É como se, instalado na intimidade do índio, o narrador perdesse (enquanto dura a narrativa) os seus valores próprios e adquirisse os dele, fazendo o leitor aceitar como necessária a maneira desabotoada de falar de sexo, das funções fisiológicas, da alimentação.”
Várias são as possibilidades de leitura de Maíra, conforme a diversidade de aspectos a serem considerados: a visão da morte, os ritos, os mitos, a viagem de busca do protagonista Isaías, mairum desenraizado que estudou Teologia em Roma e voltou cheio de perplexidade para a aldeia natal; de Alma - a civilizada em crise; dos próprios mairuns, os círculos (símbolo solar) que se formam com as históricas, as ações dos civilizados, dentre tantos outros.
É uma obra dialógica, densa, de matéria intrincada, que deve ser lida sem pressa, não só porque a estrutura narrativa é complexa, com vários planos se entrecruzando e atuando em tempos distintos, mas porque convida o leitor a um andar mais lento pelo discurso imagético, fecundo, ágil e arquitetural desse grande romancista/poeta que suplantou a ciência, o utilitário e o documental de sua produção anterior para revelar o mundo encantado dos índios e dar conta daquilo que é humano e pessoal, singular e plural ao mesmo tempo.
MENINO DE ENGENHO, JOSÉ LINS DO REGO
Publicado em 1932, a obra Menino de Engenho, de Lins do Rego, é a geratriz do grupo de romances conhecido por Ciclo da Cana-de-açúcar, denominação geral adotada por algum tempo pelo próprio autor. Esse ciclo integra romances de José Lins do Rego sobre uma mesma temática, numa mesma ambientação. Romances que configuram um mundo cercado por determinados valores e tradições do universo complexo e heterogêneo do Nordeste brasileiro, surpreendido numa fase aguda de mudanças onde se investiga o abalo de estruturas de uma sociedade rural aristocratizante, latifundiária e escravocrata.
Esse universo complexo e heterogêneo é o “mundo” do “menino de engenho”, reminiscência da infância do autor vivida no engenho do avô materno, mundo vivo e dinâmico, percebido por alguém que o carrega na veia e condicionador de experiências posteriores e aparecimento de obras interdependentes.
Em “Menino de Engenho”, o tema gira em torno da vida de Carlos de Melo no Engenho Santa Rosa, de seu avô José Paulino. Lado a lado com as lembranças do protagonista, há um interessante panorama da História do Brasil, como o relacionamento do senhor do engenho com o homem do eito, informações sobre o cangaço e toda uma visão da estrutura, hábitos e costumes de vida em um engenho do Nordeste.
O quadro das lembranças oscila entre alusões diversas, permeadas de nostalgia infantil: os negrinhos seus camaradas, a figura imponente do avô, tia Sinhazinha, os arredores do engenho, a mata, os frutos, o rio. O narrador vai desvelando o passado e não se embaraça com as confissões delicadas, que envolvem tabus sexuais e passagens eróticas, de iniciação prematura nas coisas do prazer: a masturbação, a procura das escravas etc. Mas, também as tristezas do órfão solitário dão à obra um caráter de ternura e intensa humanidade, como a mostrar que, apesar da liberdade que lhe dava o avô, não passava de um pobre menino rico, oprimido entre a saudade do elo familiar (a mãe é assassinada pelo pai o qual apresentava problemas mentais e é levado para um hospício) e o mundo novo, ensolarado e instintivo que se lhe abre com a ida para o engenho do avô.
