Felicidade Patrocínio (*)
Historiadores e críticos de arte de renome e nomeada, discorreram sobre a pintura de Konstantin Christoff. Com unanimidade reconheceram importância e grandeza nessa expressão, no entanto, escolhemos mostrar aqui, seu outro lado, aquele caracterizado pela sua pessoalidade marcante.
Konstantin, com 10 anos de idade, emigra da Bulgária para o Brasil.
A longa travessia em navio cargueiro marca para sempre suas retinas e sensibilidade. Na maturidade pinta belíssimas marinhas e passa a vida repetindo que um dia será marinheiro. No Brasil supera com facilidade as diferenças entre eslavos e latinos. É excelente aluno nas escolas e ajuda aos seus pais no trabalho de horticultura nas hortas banhadas pelos rios Pequis e Pai João, onde muitas vezes se banha.
Muito jovem ainda apresenta tendência para o desenho e interesse pelas artes em geral. Lê a literatura clássica universal, experimenta a fotografia, interessa-se pelo cinema e pratica o desenho. Estuda medicina em BH, mas retorna a Montes Claros onde presta seu serviço a Santa Casa de Misericórdia por quatro décadas. Explica sua atuação no ofício de Hipócrates, não tanto como vocação, mas como envolvimento, não se sentindo médico. Formara-se em Medicina, antes de tudo para não contrariar os pais, que fizeram estardalhaço quando ele manifestou o desejo de ser marinheiro. Mas nem por isso fez pouco caso da profissão. Antes, curvou-se amorosamente ao atendimento do ser humano, na sua situação de maior fragilidade, a doença, conquistando respeito e fazendo fama como cirurgião, fato esse que o fez merecedor da comenda Levindo Lopes da Federação das Santas Casas, em 2006.
Desde jovem e sempre, na bucólica e pacata Montes Claros de então, Konstantin despertava as atenções pelo exotismo de sua aparência e modos. Usa os cabelos compridos, fuma cachimbo sofisticado, passeia com um grande cão de feições estrangeiras e passa ao volante de um garboso Buik. Como tal, marca presença na noite boêmia. Em 1955 já está casado com Yêdde Ribeiro. Apaixonara-se pela moça bonita de modos finos e discretos A partir de então, nela terá o sustentáculo moral e a preceptora de apurada sensibilidade artística, que com muito jeito levou-o a compreender a pintura que estava iniciando. “Recatada e ponderada, mas objetiva, lentamente, com modos percetíveis, pertinazes e insidiosos, vai me domando, regulando e me enquadrando para ser um cidadão exemplar, dentro do possível.”
FILHO DEVOTO
Konstantin sempre demonstrou amor, atenção e cuidado para com a cidade que adotou, participando ativamente de todas as iniciativas importantes no que se refere à cultura e progresso da mesma.
Diz João Valle Maurício, conhecido médico e escritor montes-clarense: “Búlgaro de nascimento, brasileiro por direito, montes-clarense na afeição. Temos sobre ele o direito de usucapião. É por isso que nos envaidecemos com a sua arte e a sua glória”.
Todas as iniciativas de porte, na cidade, principalmente na área da cultura, durante décadas requeriam sua opinião. Foi e é o Mestre, promotor do crescimento das artes plásticas da cidade. São inumeráveis os seus admiradores. Muitos foram influenciados por ele em sua obra artística. Neste aspecto, confessa o pintor e escritor Georgino Junior: “Ninguém conhece o médico ou artista Konstantin Christoff impunemente.
Outro montes-clarense, também pintor e escritor, o Wanderlino Arruda dirá sobre essa relação: “A vida continua e Konstantin Christoff também continua na história de Montes Claros. Sempre admirado, sempre amado, um ícone das nossas artes maiores, pintura, escultura, desenho, a cada dia mais competente, a cada temporada com mais estudos teóricos, sabedor de tudo, estimulando jovens, criticando velhos, sugerindo sempre. Uma enciclopédia das artes e dos seus valores”.
Em nossos diálogos Konstantin sempre se definiu como ateu, Confessou sempre angústia existencial ocasionada pela falta do que ele próprio definia como “fé religiosa.” Percebia-se nele um desejo enorme de possuir uma fé contrita nas divindades religiosas instituídas, mas ao mesmo tempo uma absoluta impossibilidade dessa crença, devido às suas elucubrações de pensador racionalista. Percorreu uma longa caminhada em busca da fé.
CONTRADITÓRIO
Ousamos analisar que Konstantin era contraditório ao julgar-se ateu, na medida em que a sua vida, o seu discurso, as suas ações e as práticas das suas múltiplas profissões, o modo de se relacionar com os semelhantes, demonstraram a presença dentro dele do que os religiosos poderiam denominar Deus. Há nele uma identidade flagrante com essa força contida que chama de “Vasos Comunicantes” e sua vida nada mais é do que o espelho de uma vida verdadeiramente útil e cristã.
Poucos são os cristãos que se dedicaram com tanto empenho à reflexão sobre os dogmas e preceitos da Igreja católica. Konstantin conheceu a Bíblia, a Filosofia cristã e emprestou a sua inteligência a essa reflexão. Não se negando ao diálogo com os escritos sagrados, levou-os incansavelmente para as telas.
A ARTE
Grande parte dos seus temas sairá das páginas do Novo e Antigo Testamentos: a Via-Sacra, as Santas Ceias, Santos, Os Pecados Capitais, parte da Auto-retratologia composta com figurações de anjos, Evas, Jonas e a baleia e mais. Dos textos religiosos retirou e trabalhou os conceitos que considerava essenciais à harmonia, à boa convivência humana, à paz, por ex: a omissão, a traição, a violência, a justiça, o pecado, o Bem e o Mal.
Sua forma crítica valorizou sempre a inteligência do espectador. Apesar da grande admiração em torno de sua pessoa, Konstantin nunca se fechou numa ilha de artes plásticas. Foi uma pessoa plena de simpatia, acessível, generosa.
A DOENÇA
Com 86 anos de idade, foi acometido de um AVC que lhe dificultou os movimentos e lhe roubou a voz. Ele que tanto gostava da palavra e a usava com sabedoria, foi se recuperando nos passeios pela sua biblioteca, pelo seu imenso atelier, onde muito produzira e no jardim de exóticas árvores da sua casa, sob os olhos cuidadosos da sua querida Yedde e da cidade que sempre o amou como a um filho especial. No entanto é acometido de novo AVC, desta vez, mais devastador e se vê instalado por meses num hospital; a Santa Casa onde trabalhou por 4 décadas.
DESPEDIDA
Hoje 21 de março, Konstantin decidiu por um fim nesta situação incômoda e partiu para a longa viagem. Como um bom marinheiro que sempre sonhou ser, levantou-se do leito e recolheu as âncoras. Abriu velas e braços, estufou o peito. Sorveu o ar da vastidão, desprendeu-se da terra e se encaminhou para a travessia definitiva. Ficamos todos muito tristes, mas tentando nos conformar, lembramos que ele nos deixou um rico legado; as suas imagens fortes e significativas.
A CAMINHO DO MAR
Diante delas, será necessário refletir que não somos nós que efetivamente olhamos as imagens, são elas que nos olham e observam. Elas sobrevivem a nós. Nós passamos e as imagens que ficam e permanecem, falam por nós.
Nós temos as imagens de Konstantin, elas falam por Konstantin e assim aquietam o nosso coração. Vai Konstantin, para o mar que tanto desejou e que te espera.
Lá estão os azuis, mais azuis, lá está a claridade do sol que tão bem soube adivinhar e registrar nas suas telas, lá estão as cores em seu estado absoluto. Vá e se inunde nelas.
Vá com a certeza de que o seu talento e a sua obra nos concederam o dom de poder elevar os olhos.
(*) Felicidade Patrocínio é artista plástica, membro da Associação dos Artistas Plásticos, da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros. É uma estudiosa da obra e da pessoa do médico e artista Konstantin Christoff, que morreu na tarde da última segunda-feira, 21.