Festas de agosto: unidade identitária

Jornal O Norte
07/08/2007 às 18:40.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:12

Com características próprias e estilo único, as Festas de Agosto de Montes Claros deixaram de pertencer a um segmento local para se tornar um ritual de representação da identidade do povo montes-clarense

Jerúsia Arruda


Repórter


jerusia@onorte.net

As Festas de Agosto começam na próxima terça-feira, dia 14. A Associação dos Ternos de Catopês, Marujos e Caboclinhos se prepara para os cortejos de sacralização, que acontecem de 15 a 19 de agosto. Sob a coordenação de Mestre Zanza, os seis grupos de congado de Montes Claros - um de Caboclinhos, dois de Marujos e três de Catopês -, saem em cortejo pelas ruas da cidade, expressando sua fé, devoção, religiosidade e alegria, numa manifestação que sintetiza dimensões estéticas e valores simbólicos que dão vida e forma às suas tradições.

As Festas de Agosto se confundem com a própria historia de Montes Claros, e acontecem desde que essa ainda era uma fazenda, no início do século XVIII.




Durante o cortejo dos catopês, os meninos vestidos de rei são a prefiguração do rei nagô, que faz a conexão com o sagrado


(foto: Wilson Medeiros)

Cada vez mais presente na vida do povo montes-clarense e norte-mineiro, a festa se tornou a maior expressão cultural da região e é tema de estudo para as escolas e academias, que buscam pelo entendimento dos significados de seus símbolos e rituais.

Um questionamento recorrente durante a festa é o porquê de os congadeiros demorarem tanto tempo para percorrer o trajeto do cortejo, que sai do Automóvel Clube, na Praça Gonçalves Chaves, até a Igrejinha do Rosário, na Avenida Coronel Prates.

Mestre Zanza explica que, quando os catopês, marujos e caboclinhos saem em cortejo pelas ruas de Montes Claros, com suas bandeiras e mastros em homenagem aos santos devotos, a proposta é cumprir o ritual de sacralizar os espaços para a passagem dos reis, rainhas e imperador. Segundo o Mestre, é necessário retirar das ruas as energias que não condizem com a sacralidade que se instaura na cidade durante os festejos, e o cortejo dos ternos representa uma limpeza para unificar as partes fragmentadas pela profanidade.

Como a cidade continua sua rotina, com o ir e vir de pessoas e carros, se uma rua for sacralizada e alguém passar - a pé, de carro, de moto, até mesmo um cachorro -, antes que o reinado passe pelo espaço, o ritual é quebrado e tem que ser refeito.

Segundo Mestre Zanza, durante o cortejo, no ir e vir, os catopês estão fazendo uma limpeza energética pelas ruas.

- Os reis não podem andar por um espaço fragmentado, é preciso que ele seja transformado em espaço sagrado. Os meninos vestidos de rei são a prefiguração do rei nagô, que faz a conexão com o sagrado. Se a noite é a bandeira que faz a conexão com o sagrado, durante o dia são os reis. Qualquer coisa que passar por esse espaço quebra o ritual, então os catopês têm que voltar até o rei para se potencializar com sua energia - porque ele representa um canal de energia sagrada para os catopês -, e, então começar todo o ritual outra vez – explica Mestre Zanza.

Isso explica o motivo da demora. O ideal seria que, diante do cortejo, as pessoas esperem na calçada até que este se complete, para, então, atravessar a rua.

Em 1991 foi instituído em Montes Claros o Encontro de Ternos de Congado de Minas Gerais, e, após o cortejo da manhã de sábado, a Associação dos Ternos de Montes Claros recebe os grupos visitantes de todo estado, que vêm participar da festa. Neste ano, o Encontro acontece no dia 19 de agosto, às 9 horas, na sede da associação. Os grupos visitantes também participam da procissão de encerramento e, junto com os grupos locais, com suas vestimentas bem lavadas, dançam e cantam ao som de tambores em homenagem aos santos devotos. Após a celebração da última missa na igrejinha do Rosário, reis, rainhas e imperadores são coroados; são escolhidos os mordomos da próxima festa; os mastros são descerrados e os devotos reiteram a promessa de voltar no ano seguinte para cumprir nova missão.

FESTIVAL

Enquanto os catopês, marujos e caboclinhos se preparam para cumprir sua missão de instaurar um tempo sagrado, paralelamente, a secretaria municipal de Cultura acerta os últimos detalhes para a realização 29º Festival, que neste ano ganha o nome de Festival de Cultura Popular de Montes Claros.

Criado na década de 1960, como um apoio às tradicionais Festas de Agosto, o Festival Folclórico é realizado na praça Dr. Chaves – Praça da Matriz -, em frente à igreja da Matriz de Nossa Senhora e São José, com shows musicais, barraquinhas de comidas, bebidas e de artesanato, oficinas, palestras, apresentação de grupos folclóricos, reunindo um público ainda maior.

O chefe de Divisão de Cultura, Leonardo Palma Avelar explica que o nome Festival de Cultura Popular foi, na verdade uma mudança de conceito, já que folclore se refere a expressões culturais imutáveis e, cultura popular, a uma manifestação cultural que se constrói a cada dia.

FOLCLORE E CULTURA POPULAR

A partir de uma posição consensual dos folcloristas brasileiros, a Carta do Folclore Brasileiro, publicada em 1951, define folclore como a maneira de pensar, sentir e agir de um povo, preservada pela tradição popular e pela imitação, e que não seja diretamente influenciada pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam, ou à renovação e conservação do patrimônio científico humano, ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica.

Durante o Congresso Brasileiro de Folclore, ocorrido em Salvador de 12 a 16 de dezembro de 1995, a Carta de 1991 foi reelaborada, considerando as mudanças da contemporaneidade, e folclore é definido como o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. A carta também ressalta que o folclore e cultura popular podem ser entendidos como expressões equivalentes.

Todas essas ocorrências em torno do folclore/cultura popular parecem nos revelar a existência de um objeto em movimento permanente, cujo conceito é conseqüência do surgimento da idéia de progresso, e estimula reflexões, debates, encontros e desencontros, configurando um campo de altercação polêmico e instigante e o Festival representa um bom momento para jogar luz sobre essas discussões.

Nesse clima de (re)construção de conceitos, Leonardo Avelar diz que, neste ano, o Festival propõe o resgate das tradições dos grupos.

- Por exemplo, antes, os marujos usavam o pandeiro quadrado, feito à base de couro, antes de veado e, mais recentemente, de bode. Atualmente, muitos utilizam o pandeiro de plástico ou de fibra, usado nas rodas de pagode, e isso, além de mudar a sonoridade, descaracteriza o grupo. Também se perdeu muito a teatralização dos grupos. Os marujos já não fazem, como antes, a morte do patrão, devido ao trânsito que impede que os devotos permaneçam por muito tempo parados na rua; os caboclinhos não fazem mais a trança do cipó e os catopês não dançam o sarambê. Além disso, muitas das canções se perderam da memória dos grupos – explica Leonardo.

As Festas de Agosto, de Montes Claros, por suas especificidades, são únicas, diferentes de todas as festas de congado realizadas em Minas Gerais e no Brasil. Com o resgate desses elementos tradicionais de cada grupo, que, de modo singular, compartilham do mesmo tempo e espaço para realizar seus festejos, a tendência é que esta se torne cada vez mais especifica, unifique ainda mais todas as classes, crenças e credos, e se consolide como a festa de representação da identidade do povo montes-clarense.

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