A grande pescaria: Análise do livro O Rio São Francisco – vapores & vapozeiros, lançado hoje no Outubro literário

Jornal O Norte
Publicado em 22/10/2010 às 00:40.Atualizado em 15/11/2021 às 06:42.

José Antônio de Souza



O triplo Pescador lança a tarrafa no rio e nos dá  a comer do seu pescado. Fisga o Velho Chico inteiro e o recheia com o cerrado das margens: é este Peixe que nos é servido na santa ceia de O RIO SÃO FRANCISCO – VAPORES & VAPOZEIROS. Domingos Diniz, Ivan Passos Bandeira da Mota e Mariângela Diniz  realizam a seis mãos uma transposição barranqueira do Pescador de Homens. Os primeiros, que foram tornados os últimos, voltam de novo a ser os primeiros, repostos na proa do barco da memória que recolhe os sobreviventes da navegação extinta. Vozes esquecidas tornam à fonte da escuta; o que agoniza reanima-se na força plena dos depoimentos transcritos na íntegra.  Aqueles  condenados à morte do esquecimento, mas que ainda estão aí, em carne e osso, são tirados do silêncio para dar um testemunho de vida. É este o alcance desta pescaria sãofranciscana: à Ressurreição dos Mortos operada pelo Nazareno, o triplo Pescador justapõe uma segunda versão  -  a Ressurreição dos Vivos.


 


Este é um livro emocionado, sensitivo, a que se aplicam com justeza os versos de Maiakovski:



   Comigo a anatomia ficou louca.


   Eu sou todo coração.



Foi com o coração nos olhos que li este trabalho capitaneado por Domingos Diniz, cujo afeto pelas coisas barranqueiras conheço já de longa data, em seus artigos do folclore e na correspondência periódica que tenho o prazer de travar com ele. A edição é de um cuidado especial. O Álbum de Fotos dos Vapores introduz de estalo o sentimento do rio: a imagem das velhas embarcações faz pulsar não apenas os gráficos da recordação, mas o fluxo emocional da lembrança. Foi para aí que de cara eu fui transportado: para esta distante região do mundo interior, desaquecida de muitos anos, aonde chegou de repente o esboço antigo do desenho já vivido, revolvendo águas dormidas, reativando no agora o que parecia esquecido ontem. Grande parte destes vapores eu vi atracar e partir do cais de Januária. E eis que eles ressurgem com a feição de sua identidade reproduzida no papel, retornam de corpo inteiro  -  e a minha alma foi toda para eles, a alma de hoje impulsionada pela do menino, o garoto da beira do rio futucando o vale de lágrimas do exilado voluntário da cidade grande.


  


Não pude escrever sobre o livro às primeiras leituras. Não consegui. Queria não apenas transmitir o meu agradecimento ao Pescador ( compreenda-se sempre o trio ), mas também considerar alguma coisa de sua feitura. Talvez ainda não tenha o afastamento suficiente para dar uma visão objetiva, mas de alguma forma eu me sinto levado a comentar o trabalho dos três. O apuro da edição é o que em primeiro lugar salta à vista. Vê-se por aí o empenho em legar ao leitor  -  em especial o leitor barranqueiro – um documento de requinte gráfico, um livro que se pode guardar entre as joias de estimação.  Manuseada por eles, a forma antecipa a excelência do conteúdo. A publicação veio do esforço próprio na demorada busca do patrocínio. Uma editora do mercado não tiraria os exemplares com este acabamento, a não ser por um preço absurdo. O fato de o livro pertencer ao Pescador, na concepção e na propriedade, abre espaço para eu citar trechos de suas páginas, sem o risco de processo por uso indevido dos direitos autorais. Estou certo que Domingos, Ivan e Mariângela compreenderão a minha necessidade em fazê-lo, pois só assim dou idéia da particularidade e da riqueza dos depoimentos. À medida que a Ressurreição dos Vivos dá-se pela força documental de suas vozes, o comentário sobre os testemunhos tem que vir acompanhado da indispensável citação de suas palavras.



Mas antes das entrevistas, temos toda uma introdução física e histórica do São Francisco, uma espécie de lição de anatomia em que o corpo do rio é dissecado junto com sua alma, numa exposição que o Pescador frisa de saída tirar subsídios de estudos anteriores e a que deu “nova vestimenta em linguagem menos formal, mais à solta à moda do barranqueiro, sem amarras rígidas do chamado rigor metodológico”. Não é pois uma análise científica, mas uma mostragem assumidamente coloquial. Rastreia-se o percurso daquelas águas desde as nascentes na terra e no tempo, até os dias atuais de ameaça de extinção. Se não há preocupação de originalidade no balanço dos fatos e dos frutos, se o trânsito é o já considerado e a paisagem a já revelada, há porém um tom particular, uma certa intimidade no discorrer dos temas, algo de estar à vontade para contar que nos deixa à vontade para absorver. Todavia sem histrionismos de linguagem, sem o maneirismo de inclinação artificiosa, deformador dos modos de falar das regiões. Não. Não é isso o que se busca, não é o que se produz na simplificação dos relatos. Vê-se claramente que é informação de estudiosos, de pesquisadores, numa colheita de vazante em que os dados trazem o cheiro úmido do conluio entre as areias e as maretas. Um coloquial sem vulgaridade, isento do facilitário redutor da prosa acessível à estropiação da língua.


 


O capítulo da navegação, a história dos vapores, o currículo de cada qual no percurso do rio, suas datas, sua tripulação, seus comandantes, a soma de toda a frota no serviço das barrancas  - tudo isso é redigido com indicações objetivas, despojadas, resumindo um carinho pela trajetória e a presença deles nas barrancas, um cuidado de informar, de reconstitui-los,  enumerá-los,  que no fundo tem seus toques de  emoção, de saudade, de pesar, de dor, de paixão. Sim, eu tenho o Pescador comovido no seu balanço da navegação, em acenos tristes no seu adeus para nunca mais aos desaparecidos, indignado com os linchadores que os exterminararam – tenho toda uma gama de vibrações para sentir com ele em todo o texto  um canto, um lamento, uma louvação à existência dos vapores entre nós, à sua passagem pelos nossos portos, aos seus apitos no longo das curvas e no extremo dos pontais. Tudo isso é parte do Pescador, como as águas do rio, como as árvores do cerrado, os peixes, os pássaros, os frutos, as cidades, as gentes, os mitos. Todo o São Francisco é seu corpo, todo o Velho Chico é sua alma. 


 


Os dois apresentadores da edição não me deixam falando sozinho e sintetizam a duas vozes o espírito  do que é contado. Antônio de Paiva Moura anota que o trabalho “ é preciso e minuciosamente correto. A metodologia foi desenvolvida pelo autor, de vez que não há obra que sirva de parâmetro.  Ele partiu do mais simples e a narrativa foi desenvolvendo-se em complexidade crescente: primeiro ele fala do São Francisco. Em poucas palavras de sua autoria, ele busca informações de poetas, de prosadores e cronistas”. E no prefácio Ivo das Chagas observa: “ No momento em que muito se fala de revitalização, de transposição e sustentabilidade, geralmente por quem nada conhece, ou pouco entende de nosso rio e de nosso povo, a leitura desta obra torna-se indispensável para os que nele querem intervir, mas, também, para o deleite de quem vive no vasto território sob sua influência e para os que querem ilustrar-se com a história e a cultura vivas do rio e dos sertões que ele serve e sustenta”.



Em VAPORES & VAPOZEIROS há qualquer coisa de “esse rio é meu” na enumeração de suas particularidades. Não se trata daquele bairrismo pictórico tipo “ o meu céu tem mais estrelas, minha terra tem mais flores” etc, mas um sentimento de posse na relação do habitante com o lugar e vice-versa. Já expus essa idéia antes num artigo para o projeto do livro na fase de captação de recursos. Citei Guimarães Rosa – O sertão é dentro da gente – como exemplo de posse do possuído, aquele eu-sou-meu-mundo onde não há necessariamente a hipervalorização desse mundo nem desse eu, mas uma integração digamos espiritual, imagem que aliás vem do primeiro grande Mestre da língua, o Camões de



   Transforma-se o amador na cousa amada,


   Por motivo de muito imaginar;


   Não tenho logo mais que desejar


   Pois em mim tenho a parte desejada.   



Brinco às vezes com Domingos, por telefone, chamando-o de Fazendeiro das Águas. Em algumas de suas cartas, ele me dá notícias do nível rio, do volume dos peixes, das canoas, das barrancas, das frutas em temporada no sertão, dos pássaros presentes e ausentes, da desolação dos cerrados, das quitandas de beijus em flor, da colheita dos umbuzeiros, da fartura dos barus, notícias verbais e factuais, em que  exerce sua generosidade como proprietário virtual dessa grande fazenda aquática, senhor do rumo das águas, fidalgo do São Francisco. No livro, ele mais seus dois vaqueiros fluviais, o moço Ivan e a moça Mariângela, conduzem o assunto com a familiaridade própria da relação de posse do lugar, em que o sujeito da frase torna-se o complemento, o emissor é parte da emissão, o rio e seus entornos descritos por aqueles que são ao mesmo tempo o Pescador e o Peixe, fisgando e fisgados por um instinto de integração no anzol da víscera e do intelecto. “Primeiro eu acho; depois eu procuro”. Picasso. Definindo seu processo de criação. O intercâmbio do inconsciente e do consciente faz  aí uma variação em que o primeiro tem ascendência sobre o segundo com relação ao ponto de partida; já David Mamet, o cineasta americano, entra na variante contrária. Diz que a princípio ocupa toda a consciência, para só então deixar o caminho livre à atuação do inconsciente. “A finalidade da técnica é libertar o inconsciente. Se você seguir as regras pacientemente, elas permitirão que seu inconsciente se liberte. Isso é que é a verdadeira criatividade”.  ( Sobre Direção de Cinema – Civilização Brasileira – Pag. 25 – Tradução de Paulo Reis - 2002 ) O tema é excitante e dá pra animar um bate-papo regado a chope e surubim na brasa.


 


O consciente como elaborador do conhecimento e o inconsciente como repositório de nossas forças ocultas trabalham em parceria às vezes ostensiva, às vezes secreta, numa alternância de procedência e ascendência, assinalando ou dissimulando a questão de quem partiu primeiro e quem chegou mais alto. No caso deste livro, sei que houve uma demorada preparação, gerada tanto pela complexidade do assunto e a necessidade de se estender as pesquisas, quanto pelo alongamento dos prazos de obtenção dos patrocínios. Quase se pode dizer que foi uma tarefa de elaboração integral do consciente. O arcabouço narrativo teve um traçado prévio. Domingos me revelou em carta: “ O álbum é dividido em capítulos. O 1º, obviamente, as fotos; o 2º, Breve história da navegação a vapor no trecho entre Pirapora e Juazeiro, no século XX; o 3º, depoimentos  colhidos de velhos fluviários em Pirapora. São fatos vividos em tempos idos e narrados agora; o 4º, os vapores na literatura, especificamente ficção; o 5º, os vapores na arte popular”. Na edição, houve pequenas inversões nesta ordem ( que não alteram o produto ), a principal delas sendo o deslocamento do capítulo de testemunhos  dos velhos marinheiros para o encerramento  do livro. Houve, claro,  uma escolha consciente na nova disposição, mas desconfio que as forças ocultas do inconsciente andaram soprando a inspiração das mudanças ao triplo Pescador. Discretamente. Secretamente, como é da natureza desse provedor abstruso.



A ordem última dos fatores deu à narrativa um andamento similar a um texto dramatúrgico. Temos a apresentação – as fotos; o desenvolvimento – os relatos históricos e culturais; e o desfecho – o testemunho em bloco dos vapozeiros. Abre com uma carga emocional e encerra com uma descarga emocional ainda maior. Não estou dizendo que os autores chegaram ao efeito às cegas, por adivinhação ou por descuido positivo. Chegaram por escolha – mas a escolha é que chegou a eles pelo aliciamento imperceptível do inconsciente ( como é modo dele ) à opção racional. Aí, suponho, a velha dupla de parceiros tabelou na entrada da área e pimba! – gol do Pescador!



Invoco o truísmo tão referido que um livro é também o seu leitor ou a sua leitura. O hábito da escrita teatral me induziu a enxergar na sua forma a progressão basilar da dramaturgia. O prólogo das fotos me pegou pelas retinas: memória velha entrou em erupção a cada imagem dos vapores;  tremi nas bases, como se diz, e já de saída. A tempestade amainou um pouco no curso descritivo das etapas históricas e das manifestações culturais ao longo das barrancas, efeito semelhante à falsa calmaria que o desenvolvimento da idéia central ocupa num texto dramático. E por fim o epílogo dos depoimentos, as vozes se erguendo da sombra como um coro grego, o grande final que o Pescador reserva para a celebração do canto e da vida – O Milagre das Águas, O Retorno dos Barcos,  A Ressurreição dos Vivos!  Aí meu coração encontra o Porto. Aí meu coração, como o do triplo Pescador, encontra o Cais. Comigo a anatomia ficou louca. O Pescador conhece a mesma loucura. Padece dela. Usufrui dela. E o Vapor que ele navega é esse, o coração. O Rio é esse, o percurso é esse – o coração dentro do peito, navegando o peito, navegando o corpo, subindo e descendo nas águas curvas da alma.   



Pego o fluxo do livro: “Nos depoimentos que se seguem, a narrativa é feita pelas vapozeiros numa espécie de monólogo, em que as perguntas não se explicitam. A interlocutora, no caso Mariângela Diniz, que gravou as falas, fica muda. Torna-se virtual. Importa, antes, o vivido conforme narrado por quem viveu”. Frisando-se a referência da “autêntica linguagem ribeirinha, solta, rude e rompendo com os interditos gramaticais”. Faço um recorte das entrevistas no propósito de buscar a forma indicada do monólogo, usando o truque de retirar o nome de cada depoente, criando a unidade de muitas vozes  numa única voz  contando a navegação por etapas de viagem, de vapor, de lugar, de aventuras, de perigos, de amores, de lendas, de navegantes, da atividade profissional e do movimento da vida:


 


O que eu guardo mais lembrança, mais saudade é do Saldanha! Saldanha Marinho!


Eu naveguei no Barão de Cotegipe. No Barão, entre outras coisas, eu andei como marinheiro, andei como praticante de prático, andei como prático. Agora, no Saldanha só andei como marinheiro! Mas é que eu acho bonito o “coaxar” dele ( faz o som do vapor nas águas ) ele lá na frente e ficava a gente na lancha cá atrás no reboque. Achava bonito aquilo ali... ( faz o som da roda do vapor nas águas e depois dá uma gargalhada ) a roda dele é no meio! O apito mais bonito era do São Francisco e do Barão de Cotegipe! O que tinha força no apito era o São Francisco! O apito era do São Francisco! Esse era teimoso! Esse tinha força pra apitar! O Barão, não! O Barão era mais suave!



Nunca faltou nada na cozinha! Porque a gente sempre avisava com antecedência. Nunca faltou, não! Se pra chegar em Manga a carne é pouca, aí o comandante já ia e falava com o comissário. E já ia e já comprava com os taifeiros. Verduras, tudo a gente avisava com antecedência! O grosso, não! Porque já saía daqui com tudo: feijão, arroz, né? Abastecia aqui em Juazeiro. Aí, se faltasse verdura ou carne... ia abastecendo! O pão era pra dois, três dias! A gente comprava biscoito também! O café


da manhã era uma beleza! Era um almoço! Era churrasco, pão, biscoito, que mais que tivesse...



Naufragou o vapô Cordeiro de Miranda e morreu mais de cem pessoas. Foi à noite, vento forte, ele atravessou; aí veio o vento, ele tombou, morreu o comandante, morreu o comissário, morreu o cozinheiro. (...) O comissário chama-se Arlindo, foi à noite. Foi umas duas da madrugada, tava todo mundo dormindo. (...) Morreu muita gente, morreu muitos passageiros.



Outra vez, eu, embarcado no navio de turismo Wenceslau Braz, num lugar denominado Espírito Santo (BA), pegamos um temporal lá, perto de Carinhanha, perto da Lapa... e aí o navio quase afunda. Quase afunda! Ainda ficou com quase um palmo de água no convés; o salão da máquina todo debaixo d’água. Aí é que o vento mudou de posição e rodou um pouco. Quando rodou, o prático também melhorou a posição do leme. Aí deu estabilidade! Aí metemo o motor bomba, que o motor era equipado, tinha de tudo, aí não houve o naufrágio. Aí os passageios achavam era graça daquele sufoco! Era de dia, nove pra dez horas da manhã. Aí atracamos o vapô! Aí o vapô atracado nesse sufoco todo! Aí tinha um passageiro que dizia assim: “ Tomara que ele afunda!” Ia da proa à ré do Wenceslau: “ Tomara que ele afunda!” E a gente, já também, de olho no passageiro. Aí quando o temporal passou que nós conseguimos viagem, levamos ele ao comando. Ele falou com o comandante que ele pediu que afundasse porque tudo na vida dele era o contrário! E ele com a mão na cintura a gente achava que era arma! Não era! Era um crucifixo! Então, ele pedia que afundasse! E não afundou!



Antonce vinha uma moça no vapô Valadares. João Serapião pegou a namorá, na cidade da Barra casaram. Eles eram viúvos, embarcaram em Juazeiro e na cidade da Barra casaram. O veio não queria que ela fosse pra São Paulo.


A moça danou: “ Eu vou casar logo é aqui”.



Eu ainda me lembro de um bocado dos comandantes, porque um bocado já morreram, né?e os vapores também já acabaram. Se for pensar, é um dia pra pensar. Porque naquela época só na Navegação Mineira já tinha doze a treze vapores, só a Navegação Mineira. Na Companhia Indústria é que tinha os melhores vapores e a Navegação Baiana tinha um bocado viajando no São Francisco. Tinha o Raul Soares, aquele grandão, de três classes, tinha o Engenheiro Halfeld, viajei neles tudo! Nos vapô da Compainha eu viajei neles tudo!



Armando Rachinha, ele era comandante, aí então ele era uma pessoa assim muito positiva!  Muitas pessoas falavam que ele era nojento! Mas, não, ele era pessoa positiva! Se você fizesse coisa boa, ele elogiava na hora, mas também, se fizesse coisa errada, né? Ele lhe vinha pessoalmente e lhe falava na cara! Então, quando tudo saía a gosto dele, ele chegava na porta da cozinha dava aquela risada: “ Ô cozinheira! Ô cozinheira! Cê tá de parabéns, viu? Nota dez! Mas não confia muito, não! Na mesma hora que eu dou dez, eu tiro o um e deixo o zero, viu?”



Desceu aqui, neste vapor Benjamim Guimarães, uma alemã por nome de Elizabeth Rossi, e a gente começou a namorar e tal, e ela tomava muita caipirinha e ficou com raiva, e aí pegou meu quepe e minha platina e jogou dentro d’água. E o comandante era Leobas, e ele ia me punir cinco dias, mas o pessoal pediram e passou batido. Mas fui chamado à atenção e nunca mais namorei a bordo.



Tem até uma história. Bom, esta história não é das mais recomendáveis. O comandante Aristides foi presidente da Navegação. Ele era almirante aposentado, né? Era um cara intelectual. Tava sempre com um bom livro na mão. E contam que ele, viajando num vapor tratado com todos os cerimoniais possíveis, ao chegar na cidade de Januária, o comissário daquele vapor se aproximou dele, pediu licença e falou: “ Comandante, comenta-se por aqui que o senhor gosta, às vezes, de uma mulherzinha e tal. E aqui tem a melhor zona boêmia do São Francisco e tem umas mulheres já mais idosas assim. Mas são mulheres sérias, e que a gente podia levar o senhor lá, se fosse do seu interesse. Ele falou: “ Não, não, não, não gosto de mulher séria. Mulher séria eu tenho em casa. Eu gosto de mulher vagabunda mesmo!”



Ele subiu no camarote do comandante, e não sei como, ele, o Emiliano, esqueceu a porta aberta... então pegou o revólver dele, e desceu com esse revólver, entrou no camarote, mandou os colegas dele, os passageiros saí. “ Sai daqui! Que hoje eu mato meu pai!” Aí eles pediram: “ Que é isso, companheiro?” “ Não... hoje eu mato meu pai!” E no camarote assim: ele, sentado na cama, aqui tinha duas camas pra cá e duas camas pra lá... e a porta do camarote, e um dos passageiros do camarote falou: “Comissário, o filho do comandante tá bêbado... bêbado... bêbado, e disse que vai matar o pai dele”. Eu disse: “ Que é isso, homem, que é isso?” Ele disse: “ É verdade... é verdade!” Eu disse: “ Eu vou lá!” E fui. Quando cheguei perto, eu disse: “Carlinhos! Que é isso, Carlinhos? Tenha paciência, deita aí e durma, Carlinhos! “ “Não, não, comissário, hoje eu mato meu pai!” “ Mas, Carlinhos!” “ Não insista, não,  que eu atiro em você!” Eu não tinha nada com o negócio, eu me afastei , chamei Emiliano. Digo: “ Não vá, Emiliano; não vá que ele te atira, mesmo, e você não tem recurso, porque ele tá na porta, atrás da porta, sentado na cama”. “Ah! Vou! Num vejo homem mais do que eu, não!” Eu digo: “ Num vá, Emiliano,  num vá, não!” Aí ele disse: “ Vou!” Já era hora do almoço e os oficiais estava descendo pra pegar a mesa, e eu, servindo a mesa dos oficiais lá, e fiquei. Com pouco, eu vi: “Pêi... pêi... pêi...” Eu disse: “ Matou! Matou!” E corri pra lá... corri pra lá e tava lavado de sangue Emiliano! Lavado de sangue! E chamei o contramestre, digo: “ Manda um marinheiro forte pra nós prender esse menino aqui no camarote!” E prendemo ele no camarote! E eu fui dar assistência. Botamos quatro marinheiros forte na porta do camarote pra ele não sair. Aí fui dar assistência a Emiliano. Puxamo Emiliano, botamo na porão do vapor e o vapor navegando... navegando...(...) Eu nunca vi perder tanto sangue daquele jeito. Porque que ele era um homenzarrão, né? Um homem forte, né? Aí ele melhorou e disse: “ Comissário, num morro mais não! Não morro mais não!”



Olhe, Lampião não chegou a atacar o vapô, não! Não! Eu corri foi dele no vapô que eu andava. Nós corremo foi dele! Ele não chegou a atacar, porque não teve condições, porque ele foi pra Oliveira acima de Sento Sé. (...) Aí eles diz que lá em Oliveira, eles falando pra nós, quando deu fé, viu chegar aquele bocado de home tudo armado. E só sabiam que era ele, porque o tipo de chapéu deles era tudo de cangaceitro e eles tudo com arma. Aquelas armas ali e aqueles bucado de burro com carga e tudo. Aí o povo ficaram tudo assombrado! Disse que ele foi. Assim o dono lá do lugar falou pro comandante nosso, que era Inácio Bispo. Ele contou: “Olha, ele chegou aqui, mandou todo mundo dele ficar afastado das casas e veio aqui nesse quarteirãozim que tinha loja e armazém”. Aí ele disse: “ Eu sou Lampião, tou aqui, meus home tá tudo aí, sentado, eu não quero nada e não precisa ocês assombrar comigo! Não quero que ocês corra, nem que chore, nem que grite! Eu não quero e não vou buli com ocês. Só quero comida pro meus home. O senhor tem gado? Se tiver, manda matar um boi pra mim, pegar pra mim ir embora. Eu tou de passagem”. (...) Ele disse que só via muita gente chorar, aquelas mulheres chorano com medo! Ele disse: “Ninguém vai mexer com ocês! Nós queremos a carne! E outra coisa... Esses meninos aqui tão tudo nu; por que não pode vestir roupa?” Aí ele disse: “ Hoje o senhor deixa essa roupa aí, essas prateleira cheia de roupa, pode jogar tudo no chão que eu vou dá pra esse pessoal que tá aqui e precisa vestir.(...) Eu não quero dinheiro, eu sei que ocê tem dinheiro, eu não quero! Agora, essas roupas aqui, toda essas criançadas que tá aqui com essas mulheres aqui, quase nuas no meio desse mato, vou distribuir”.(...)  Ele disse que pegou tudo, ele mesmo, e jogou, pôs tudo pra fora e os homem pegano e dando. Aí, quando ele acabou de fazer aquilo que eles queria, já as carnes já pronta pra viagem. Ele diz: “ Agora, eu vou-me embora! Então o senhor fique sabendo... Não me tome um metro desse pano dessas pessoas, porque, se tomar, eu volto aqui e boto fogo nisso tudo aqui”. Porque diz que ele fez e disse pra ele: “ Não! O que o senhor fez tá feito! Não precisa o senhor se incomodar”.



Eu viajava no Cordeiro de Miranda e aqui, acima de Sento Sé, num lugar chamado Riacho dos Pais, quando anoiteceu, nós atacamos pra pernoitar, para que no outro dia nós saíssemos pra chegar em Juazeiro. A lenha, que era o combustível dos vapores, estava pouca e nós só íamos abastecer em Santana do Sobrado e resolvemos tirar o fogo pra não gastar lenha durante a noite. Como estava fazendo muito calor, os marinheiros e carvoeiros apanharam suas esteiras e foram dormir na praia onde o navio estava atracado. E o navio silencioso, sem luz, só com a luz das lâmpadas tubulares, duas pra três horas da madugada, nós ouvimos um apito, três apitos (pipi, pipi, pipi ), como apito de saída, e vimos também o tilintar do telégrafo para as máquinas, pedindo máquinas e nós levantamos com as esteiras debaixo do braço, correndo para dentro do vapor; quando chegamos lá, pra surpresa nossa, o vapor tava silencioso; não havia nada, era assombração.



Quando encontrava um vapor com outro, dava um apito e o outro dava dois apitos, cumprimentando. Marinheiro quando encontrava com outro, torrava rapadura, torrava cachaça: “ Cadê a cachaça, cê trouxe?” Quando ele ia descendo, subindo ele perguntava: “ O que cê trouxe pra mim”



Quando o vapor chegava nas cidades, a gente virava o cão. Pra farra, a melhor cidade era Januária! Januária era a melhor cidade! Juazeiro era ponto final! Juazeiro e aqui (Pirapora) ponto final; agora, no meio do caminho, pra farra, era Januária! Juazeiro era bom demais! Pirapora era bom demais! Quando o vapor encostava, nego saia assim feito uns doido, feito cavalo bravo! Entrava ali no Celso, naquela ponta até aqui em cima aquela rua direto, desde aquele bequinho ali só morava o povo bom! Em Juazeiro era na Esperança! Mulher de forró era lá na Esperança e as outras lá no Angaraí. Em Januária era lá na beira do rio! Aquela rua da beira do rio perto da Capitania por ali... ali tinha demais!



Como comissário eu servia a comida. Na primeira classe sempre demos comida razoável e satisfatória... né? Mas a segunda (classe ) que era uma tristeza, viu? Era feijão, arroz e farinha... às vezes tinha carne... às vezes não tinha! Às vezes adoeciam com disenteria, infecção, mas eu tinha noção dos primeiros socorros... dava um remediozinho... e eu ficava mexendo com os cozinheiros e mandava lá na comida com muito apego e mandá comida de primeira até eles recuperarem.



Na Bahia tem uma região chamada Mocambo dos Ventos; é uma região, até um fenômeno geográfico interessante, que são serras de areia, parecendo dunas ali naquela região daquelas montanhas de areia na margem do rio, em alguns lugares chegavam até areia cair no rio. Outras afastavam mais, mas no Mocambo dos Ventos as montanhas de areia chegavam às margens do rio, principalmente quando o São Francisco estava cheio. Fica entre Pilão Arcado e Xique-Xique, porque, pegando a navegação em direção à Bahia, de Minas pra Bahia, você tem Xique-Xique, Mocambo dos Ventos e Pilão Arcado. Aí acontecia, como o vento era muito forte, havia um reflexo sobre as águas do São Francisco, que criavam um fenômeno, que eram ondas, mas que se chamava lá de “mareta”. As maretas eram grandes ondas que desequilibravam o barco.



Quando eu navegava, os lugares mais perigosos do rio: primeiro, a cachoeira depois de Remanso; depois, Remanso abaixo; tudo era trecho de pedra. Em Sobradinho tinha só portão pra você passar. Cada lajedo enorme! Aí, quando o rio enchia e  cobria, aí ficava perigoso, porque quando não tinha uma cobertura boa de uns cinco metros sobre as pedras, não ficava visível. O prático não via a pedra e o vapor podia bater, ou se entrasse num portão errado.



A melhor saudade mesmo é do pôr-do-sol nesses lugar de cerrado, de morro... o pôr-do-sol é maravilha! Nesses lugares a mesma coisa, amanhecer do sol, da manhã... é aquela maravilha quando o sol vem raiando, vem saindo! Ou vendo os outros dirigindo também. A lua... quando a lua sai na época de estiagem aquele clarão, uma maravilha aquilo lá! Dá uma saudade muito grande desses tempo! E.. além disso, o companheirismo legal, isso era uma maravilha. Era uma coisa de família!



 Viajar é bom! A gente trabalha, mas distrai demais!



Uma vez me perguntaram: “ Como é que você faz que você tem tanto fôlego?” A gente que anda pelo mundo, a gente tem que saber muita coisa. A gente tem que ter recurso.



As barcas vinha até Januária. Mas a minha tristeza é não ter mais vapô, os políticos deixaram acabar!



 Ah, eu me sinto muito triste, porque a navegação não era só um meio de transporte de carga e passageiros, mas também, um meio de empregos. Eu, por exemplo, vim de uma tradição que meu pai era maquinista e dali eu segui a carreira de embarcadista, porque meu pai era tripulante. E era uma empresa que tinha mais de 2.800 empregados, quase todos familiares.


 


Hoje, nós sabemos que a navegação do São Francisco acabou, e eu sinto saudade é daquele movimento das embarcações, inclusive muitos colegas meus ficaram desempregados que não tinham tempo pra se aposentar, porque a Franave foi extinta. Então, a gente sente saudade daquele movimento constante das embarcações que hoje não existe mais!


 


Então o que acontece, que são as coisas que eu encontrei, que são as coisas mais importantes na minha própria vida lá dentro das embarcações. Que são as coisas que causam graça e fazem recordar muitas outras coisas que, às vezes, a gente pensa que sabe viver, mas não! Isso passa é na vida! Porque tem duas coisas: uma coisa que eu sei viver e a outra coisa que eu passo na vida! Ou a senhora não concorda? Porque, se eu viver pelos olhos dos outros, eu não vivi minha vida! Só passei na vida! Tenho que viver a minha vida! Aí, então, não importa com a vista do público!



É um breviário d’ A Ressurreição dos Vivos, a longa prece de amor e pesar colhida pelo Pescador de Homens na boca dos remanescentes da navegação. São pequenos trechos da Oração da Saudade rezada pelas vozes esquecidas na sombra, trazidas à luz da hora presente. É uma aleluia e um canto fúnebre. Sol e chuva, noite e dia, água e areia, vida e morte, risos e lágrimas do Velho Chico através da vivência e revivescência dos marinheiros. Navegar é preciso.Viver não é preciso.



Numa de suas cartas, mestre Domingos Diniz me convida a navegar. Dá leme à imaginação e me reserva um lugar entre a tripulação e passageiros de todos os tempos para um passeio magistral: a frota inextinguível dos vapores e barcos do São Francisco, singrando as águas em caravana ao sopro da manhã, renascidos para  as viagens redondas de Pirapora a Juazeiro, revezando o canto dos apitos como um coro de saudade diante do cais, rio abaixo, rio acima, rio adentro, a navegar para todo o sempre  em nossa memória e em nosso coração, eternamente parte de nós, eternamente dentro de nós, os barranqueiros.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por