Viagem de palavras

Mara Narciso, médica e jornalista
28/08/2017 às 20:43.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:18

Maria Milena Narciso Cruz nasceu em 11 de maio de 1934 e morreu em 28 de janeiro de 2003. Ela não queria viver muito, e dizia que não faria diferença morrer com 68 ou 72 anos. E assim fez: aos 68 anos foi colhida por um glioblastoma multiforme – câncer no cérebro -, que ceifou sua vida em 32 dias. Partiu, mas nos deixou suas palavras, e nelas o gosto por viajar.

A minha mãe era filha de Petronilho Narciso e Maria do Rosário de Souza Narciso. Morreu há quase 15 anos e vive em mim, nos genes e na memória. Discreta, reservada, falava que suas tias ficaram velhas aos 40 anos, pois, viúvas, vestiam-se de preto, encurvavam-se e, abraçadas ao missal, iam apenas à igreja.

Tinha pavor dos micróbios e quando voltava do cemitério, chegava na ponta dos pés e jogava sapatos num canto e roupas no outro. Nos vírus e bactérias acreditava, mas não tinha crendices. Contava das benzedeiras com ramos que murchavam - de bater no benzido, não eram maus espíritos coisa nenhuma -, dos banhos de folhas, dos chás, mas gostava mesmo era da ciência, das vacinas, dos médicos e remédios tradicionais. Esterilizava com álcool e fogo a bacia para nos dar banho, e nos ensinou a lavar as mãos antes e depois de usar o banheiro, sempre que chegasse da rua, quando pegasse em dinheiro, sapato, pano de chão ou qualquer coisa suja.

Assistiu um amigo cair em sua frente. Era o 1º sinal de sequela da poliomielite. Traumatizada, desde então, vivia atrás de uma vacina para nos salvar. Um dia, chegou com duas ampolas e nos vacinou. Vacina Salk, ela nos disse.

Gostava muito de dormir e de comer e dizia: se fome e sono forem saúde, estou sadia. A outra coisa era viajar. Nunca recusou um convite e viajou tudo que pôde. Em poucos minutos estava pronta. Qualquer viagem em sua companhia ficava boa, pois Milena transformava um piquenique num grande passeio. Passear em qualquer roça já era bom para ela. Uma areiazinha para pousar os pés, água fresca para molhar as canelas, e frutinhas do mato para comer ficaram tatuadas nas minhas memórias afetiva, visual, olfativa e gustativa. E se adoro os frutos do cerrado, começando pelo murici, depois araçá (que plantei no meu jardim), mangaba, panã e outros, foi por obra dela. Que cheiro, que sabor! Vamos passear no mato para catar cagaita?

Espírito livre, ainda que encurralada num casamento infeliz, não se deixava amordaçar, e nas viagens se libertava, mesmo presa. Aos 50 anos, deu seu grito de guerra, “Libertas que sera tamen”, rompeu com algo que a torturava, e que antes não tivera forças para quebrar. Justo ela, que nos ensinava o Hino da Independência: “os grilhões que nos forjava, da perfídia, astuto ardil, já brilhou a Liberdade, no horizonte do Brasil”. Daí viajou com gosto e vontade, para depois nos contar com minúcias de cientista. Era quando viajava de novo, explicando o roteiro, a viagem em si, as demoras, os prazeres, as expectativas, as chegadas.
Com vocabulário de sonhadora racional de tendências esquerdistas e quase nada de preconceitos, fazia uma fotografia colorida do lugar, o qual se orgulharia da sua descrição. A cena ficava mais bonita quanto ela contava: a luz, o céu, as nuvens, o vento, o falar das pessoas, o odor. Tudo gostoso, mas as comidas, os ingredientes, a aparência, os sentidos despertos, a salivação, o sabor, a textura a passear pela boca, o mastigar, o engolir. Assim eram as explicações e as interações.

Milena não gostava de escrever relatório médico, sentia-se incomodada em ser analisada, tinha pavor de microfone e discurso, mas estando em seu elemento, nos levava até suas experiências de vida e viagens, de norte a sul do Brasil, América do Sul, América Central e Europa tradicional. Nada será como antes com Milena, mas tudo será bem menos brilhante sem ela.
 

Espírito livre, ainda que encurralada num casamento infeliz, não se deixava amordaçar, e nas viagens se libertava, mesmo presa
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