O enterro da meretriz

Jornal O Norte
16/09/2005 às 11:08.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:51

 

Clídio de Moura Lima *

 

O corpo inerte e frio chegou às beiras da cova. Cova rasa ou não. Era suficiente para abrigar aquele esqueleto humano. Veio trazido por seis, não mais que oito pessoas, que se revezavam carregando a meretriz dentro de um simples caixão fúnebre, no caminho para a última morada, como único ato de piedade cristã recebida pela defunta. Não havia flores. Nem um ramalhete tosco de buganvília, de flores de ipê-roxo, flores do campo. Quiçá porque os machos não levam flores, nem em enterros. Foram acesas três velas, colocadas sobre a sepultura, já coberta de terra. Simples e rápido. As exéquias foram desse modo. Assim foi o enterro da meretriz.




Na mocidade ela era bela, faceira e atraente; jovem então, sua mocidade foi cercada por homens da sociedade local, assediada por todos. Deu amor e gozo a tantos e muitos cidadãos honrados que freqüentavam sua casa de encontros amorosos, na calada da noite e se deliciavam nas suas entranhas. A disputa pelos amores, pelas carícias dela, era feroz. Havia luta corporal pelo amor da prostituta. Bons tempos os de sua juventude, cercada de amores, luxo e toda beleza que se pode desejar de uma fêmea. As senhoras esposas de então, submissas, dominadas pelo machismo imperante da época, limitavam-se ao sussurro entre si e não escondiam a inveja da beleza daquela rameira. Lá se vai a mocidade, escoando pelos janeiros da vida. Já madura (um pouco mais de minguados 30 anos de idade), a gazela deixou de despertar a cobiça dos homens poderosos e ricos para saciar a luxúria incontida de uma hoste de pós-adolescentes sedentos de sexo, desejosos de seu próprio desvirginamento para provarem sua masculinidade. Toda a juventude, todos os mancebos, comeu a maçã proibida de Bela.  Era sempre festa o ato quase animalesco dos jovens cruzando com Bela. Não havia amor. Somente tara, sexo voraz, comentado nos encontros dos jovens que se gabavam da proeza.




Bela. Esse era seu nome popular. Tantos bons serviços prestados...




Hoje, seu corpo sem vida passa célere pelas principais ruas da cidade dentro de um singelo ataúde de madeira de terceira, revestido de um pano azul de chita; ao que parece, a exemplo dos caixões fúnebres doados pela municipalidade aos indigentes. O féretro então seguia rumo à derradeira morada. Não mais que oito pessoas acompanhavam o enterro, a passos largos; repita-se, com respeito ao leitor. Nenhum dos ex-amantes de Bela quiseram vê-la ou prestar-lhe o derradeiro ato de piedade cristã. Estavam envergonhados, lembrando-se das noites que com Bela passaram em seu aconchegante quarto de dormir. O mesmo se diga dos mancebos desvirginados por Bela e que consigo tiveram a primeira experiência sexual, revelando-se homem.








 

Semelhante a gado tangido, levado para o matadouro, era o enterro de Bela...




A missa de corpo presente, com defunto ainda quente, não foi celebrada. O padre estava fora da cidade, pequena urbe do nosso Norte de Minas, bem aqui... Oh/image/image.jpg?f=3x2&w=300&q=0.3"left">


Tudo era luxo pra época. A geladeira, nem se diga. Luxo puro que causava muita inveja. Poucos tinham geladeira em casa. Bela desfilava pelo salão iluminado por luzes multicores. Agora, seu desfile é só lembranças. Ou seria delírio? Uma coisa ou outra, ou ambas: lembranças e delírios? Ocorridos naquele tempo ou acontecidos hoje? Pouco importa. Tudo é fantasia. A vida é assim, meu caro leitor, pura ilusão.




A vida passa rápida e vertiginosamente, como a primeira experiência sexual com Bela, cuja formosura acelerava o coito e se chegava ao orgasmo com vertigem.




Foram acontecimentos que hoje, os homens de então, também envelhecidos pelos anos de vida, contam, com saudade e coragem. No dia do enterro de Bela ninguém se atrevia a contar suas aventuras amorosas.




Hoje, tudo mudou. Os homens já são anciãos, alguns até já morreram. Os mancebos, ah! Aqueles jovens, hoje são senhores empresários, fazendeiros, médicos, engenheiros, advogados... Bem, é só pra dizer que todos, hoje, são homens maduros e experientes, formados, realizados na vida, quase todos. Trilham os bons costumes, a moral e a decência, atributos que andam lado a lado com a hipocrisia e a falsa moral, alhures. No nosso conto, isto conta? Que importa quanto. Tudo é fantasia! 




Florisbela Maria dos Santos era seu nome por inteiro: nome, prenome e apelido.




Bela morreu. Outras belas irão morrer...




Adeus, Bela. Florisbela Maria dos Santos.

 

* Advogado e professor da Unimontes - Autor do livro

clidiomoura@bol.com.br





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