Quando se deve desistir?

Mara Narciso - Médica e jornalista
O Norte - Montes Claros
25/09/2018 às 05:40.
Atualizado em 10/11/2021 às 02:37

Os chavões na área da auto-ajuda em relação à desesperança, à desistência, ao jogar a toalha e ao desânimo são intermináveis. Estão na boca do povo, estão nas músicas, estão em todo lugar. A ordem geral é nunca desistir. No caso de amor não correspondido, é melhor sair de cena. Existem poucas coisas mais humilhantes do que a pessoa, não tendo a presença desejada, perder a dignidade, mendigando atenção. Esta miséria, posso falar de boca cheia: nunca a pratiquei. Após um fora, é fundamental deixar o palco para manter o amor-próprio em seu devido lugar: no alto.

Noutro setor, também acredito haver limites para tratamentos médicos, especialmente na oncologia e neurologia. Formada há 39 anos em medicina e atuante na área da endocrinologia, com dez anos de urgências em atividade hospitalar, advogo essa tese, pois não vejo sentido em atuações radicais e inúteis, em se tratando de casos perdidos.

Desde que a medicina progrediu com seus suportes ventilatórios, órgãos artificiais, alimentação parenteral e outros avanços, surgiu uma pergunta imperativa: até onde se deve ir? Outras áreas médicas também se dividem em questões morais e éticas. Quais deverão ser os limites da clonagem de seres vivos, da mistura de genes, do transplante de órgãos e outros procedimentos?

É proibido deixar morrer? Há critérios para essas decisões, mas que poderão ser questionados, e então, quando deverá ser declarado o fim da terapêutica e a entrada dos cuidados paliativos? Algumas pessoas deixam por escrito não querer morrer num CTI. Outros, mais radicais, não querem ir para o hospital. As doenças degenerativas incuráveis, progressivas e paralisantes nos dão fortes lições de sofrer todos os dias. Todos conhecem casos de coma profundo, sem reação palpável, em pessoas em CTI e no respirador, quando apenas o coração bate, durante infindáveis anos. Para que serve essa vida? Caso pudesse escolher, o que escolheria o doente? E quem é parente e cuida, o que pensar? Não pode decidir e se culpa quando pensa que as coisas deveriam se abreviar, naturalmente.

Outros casos surpreendem, mesmo que sejam situações sem esperança: alguém, aparentemente fora desse mundo, inconsciente há tempos, manifesta alguma atividade cerebral, esboça emoção, expressividade facial, lágrimas, diante de uma visita, ou de uma palavra, ou de uma música. Isso choca. Os critérios médicos para morte cerebral necessitam, além dos testes comprobatórios, de mais de um especialista para atestar a tal morte.

Eu sou contra medidas heróicas extremas, eu não quero ficar em estado vegetativo, eu não quero isso para ninguém do meu afeto, ninguém quer, mas, o extremo pior é ser obrigado a escolher quem deva viver e quem deva morrer. Alguns médicos, em péssimas condições de trabalho, às vezes precisam fazer isso, mesmo contra o juramento de Hipócrates. O motivo? Dois doentes recuperáveis, ambos precisando de ventilação assistida, havendo apenas um respirador. Vi cenas assim, que me fizeram lembrar do livro de William Styron, “A Escolha de Sofia”. Nele, uma mãe de dois filhos foi obrigada a escolher um deles para seguir com ela e sobreviver, enquanto o outro iria para o forno crematório na Alemanha Nazista.

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