A morte é um ato comercial

Mara Narciso - Médica e jornalista
Montes Claros
15/05/2018 às 05:52.
Atualizado em 03/11/2021 às 02:50

Noutros tempos havia uma visão romântica da pobreza e um jeito peculiar de encarar a morte. Um único caixão de papelão de fundo removível podia levar ao cemitério um corpo de cada vez, porém por diversas vezes. Na hora de depositar o morto no fundo da cova, o artefato era recuperado, soltando seu fundo e subindo sem ele, para ser reaproveitado. A miséria dos indigentes era a maior de todas. Mas uma pessoa se sentia aviltada em ver seu semelhante ser jogado diretamente sobre a terra, e condoído, passou a bancar os enterros. Leonel Beirão de Jesus e a sua famosa Boneca de Leonel, que fazia propaganda das lojas pelo centro da cidade, pedia ajuda e não deixava nenhum corpo ao relento. Benfeitor da cidade, nome de avenida, atuava em prol de quem nada podia, enterrando-o dignamente.

O Cemitério Bonfim, criado em 1935, recebia em seu seio 120 corpos por mês. É a cidade dos mortos. Consta de ruas, capelas, monumentos fúnebres, mausoléus grandiosos e esculturas em mármore. Quando ficou cheio, improvisou-se o Cemitério Jardim da Esperança em 1989, um prolongamento que já está lotado. Nele não se fazem túmulos, apenas lápide sobre a sepultura ou gramado com flores, algumas de plástico que transformam o feio em aterrador. O arruamento é singelo, estreito e a estética cheira o improviso.

O Cemitério Parque dos Montes, próximo ao bairro Independência, funciona desde julho de 2016, sendo um empreendimento que mudou o conceito de sepultamento em Montes Claros. Poderá abrigar 90 mil mortos. Oferece velório, capela, atendimento psicológico e homenagem final em ambiente higienizado para amenizar a dor. A cremação logo estará disponível. Suas instalações são amplas e a técnica de gavetas poderá enterrar mais corpos por metro. As sepulturas têm paredes de concreto, como engenhosas moradias eternas, umas coladas nas outras, podendo o jazigo abrigar até 3 pessoas num sistema de superposição. No cortejo, o transporte da urna, sob o som de músicas fúnebres, é feito por um carrinho elétrico de 2 assentos, com cobertura e laterais para o transporte de flores. A diretora do lugar vai até a tumba e observa o trabalho dos coveiros.

Em 2016 o custo da sepultura de 3 gavetas era de R$ 2.500. Descendo a urna por cordas, depois se fecha a cova com placas de cimento, cobre-se com terra, grama esmeralda e pequena lápide de meio metro com epitáfio e nome do finado. As alamedas planas, amplas, com gramado, jardins, latadas, e arborização têm ao fundo a área dos jazigos, num dos quais está a minha amiga jornalista Rosângela Alves, que trabalhou naquele campo santo e gravou comercial de lançamento do produto.

Ainda que o novo cemitério seja uma empresa particular que ganhou uma licitação pública, o‘Estado de Minas’ informa que as pessoas carentes não pagarão pelo terreno, tendo 3 anos para se decidir pela compra, cujo pagamento poderá ser feito em 12 vezes. A morte era assunto da benemerência, mas hoje é um negócio. Visa lucro com requinte e civilidade. O conceito de cemitério mudou, e ali impera a Lei de Lavoisier total: nada se perde tudo se transforma. “És pó e ao pó retornarás”.

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