Ficção representativa

Mais do que ampliar narrativas, fanfictions suprem a falta de visibilidade das questões LGBT na mídia

Jéssica Malta
Hoje em Dia - Belo Horizonte
20/04/2018 às 18:28.
Atualizado em 03/11/2021 às 02:27

Há quem diga que a nova geração não lê como a anterior – em forma e volume. Se considerados livros tradicionais, talvez sim. Mas se a crença for vista por ótica diferente, pode estar bem distante da verdade. Nas telas de computadores e smartphones há uma infinidade de novas histórias e produções narrativas. E feitas pelo próprio público, o que torna a experiência ainda mais instigante. 

Tais narrativas, que povoam a web em sites exclusivos, são conhecidas como fanfictions, fanfics ou apenas fics. Essas ficções de fã (na tradução literal do inglês) recorrem, em sua maioria, a personagens já existentes na cultura midiática – o que permite infinidade temática gigantesca – buscando inspirações em filmes, músicos e outras celebridades, seriados e na própria literatura. 
 
VISIBILIDADE 
Por mais mirabolantes que algumas narrativas sejam – como a que aborda o romance entre a cantora norte-americana Selena Gomez e o apresentador brasileiro Faustão, que, aliás, se tornou viral – as histórias têm valor. 

A pesquisadora Paula Pinheiro observa que, além de ampliarem narrativas e levá-las a outros rumos, esses conteúdos podem até mesmo questionar a representatividade na mídia e ajudar o público a lidar com questões pessoais. “Muitos livros surgem da tentativa dos autores de entender os próprios sentimentos, mas escrever uma obra original é desafiador. Fica mais fácil quando você pega emprestado personagens e elementos de um universo já existente para explorar tais questões”. 

Nesse sentido, ganham destaque as fanfictions de conteúdo LGBT, que chegam a congregar milhares de leitores e visualizações na web. Skyfall, inspirada no romance fictício entre as ex-integrantes do grupo Fifth Harmony Camila Cabello e Lauren Jauregui, por exemplo, já acumula mais de 200 mil views no site Spirit Fanfiction. 

A pesquisadora infere que a questão da representatividade se destaca nessas produções que trazem romances lésbicos, as femslash. “Estas fanfics produzidas por mulheres lésbicas e bissexuais parecem ser uma maneira de validar a própria sexualidade. Temos pouquíssimas narrativas de mulheres que se relacionam com outras que não sejam fetichizadas, que não sejam produzidas para o olhar masculino”, observa. “Então nesse caso eu vejo as fanfics homoeróticas como forma de resistência”, acrescenta. 

Por estarem inseridos em universo que, segundo Paula Pinheiro, é formado principalmente por mulheres jovens, tais conteúdos reforçam a descoberta da sexualidade feminina. “Ponto recorrente nas discussões sobre essas produções dentro dos fandoms (comunidades de fãs) é que isso é de certa forma uma feti-chização desse relacionamento. Me parece que a figura do ‘melhor amigo gay’, com uma sexualidade que não o coloca como um predador para as mulheres heterossexuais, acaba contribuindo para a produção dessas narrativas”, diz. 

“A sexualidade feminina, independentemente da ori-entação sexual, é muito reprimida. Isso tem mudado com a reemergência dos romances eróticos, mas ainda há muito tabu”. 

Uma ajuda para lidar com a sexualidade
“É bom usar o personagem como válvula de escape e contar experiências, porque tem momentos, desejos e uma infinidade de coisas que não têm como você expressar. Mas com a escrita você chega bem perto disso”, pontua Taemeetevil, autora baiana de 21 anos, que no universo das fanfics assina suas produções com este pseudônimo. 

Por darem visibilidade às questões homoafetivas, a autora acredita que essas histórias também têm êxito em capturar leitores. Taemeetevil, que publicou a primeira fanfic em 2013, conta que a produção de narrativas homoafetivas começou no ano seguinte. “Já escrevi cinco histórias. Em 2016, que foi quando eu me assumi LGBT, estava perdida e não conseguia lidar com isso”, lembra. “Quando voltei a me interessar por fanfics já não queria ler as (histórias) heterossexuais. Queria algo mais próximo”, diz. 

A aposta deu certo! Sua história mais recente, chamada “God Killer”, soma mais de 104 mil visualizações no site Spirit Fanfics.

Possibilidades de rumos alternativos
Leitora assídua de fanfictions, a artista autônoma Giovana Werneck, de 29 anos, conta que começou o hábito ainda nos tempos de escola. “Lia sobre os desenhos que eu gostava, como Sakura Card Captors, mas só fui realmente me envolver mais intensamente e começar a produzir quando entrei no fandom de Harry Potter”, lembra.

Apesar de não escrever mais fanfictions, o interesse por este universo permanece. “Normalmente procuro histórias com casais da mídia que eu admiro, ou do fandom que eu esteja envolvida no momento”, conta. “Apesar de procurar fanfics que tragam casais sobre os quais eu queira ler, o que realmente me prende é a forma como essa relação vai ser desenvolvida”, revela. 

Na seara dos romances, ela conta que a busca por essas histórias surge da insatisfação com determinadas representações ou os rumos dados aos relacionamentos ‘originais’. “A minha frustração está nos jogos em que casais pouco desenvolvidos são os que de fato existem”. 

CLOSSÁRIOFanfiction: narrativas produzidas por fãs, que recorrem a personagens ou histórias já existentes ou trazem celebridades como personagens principaisFandom: comunidades de fãsFemslash: fanfictions que relatam romance entre mulheresSlash: fanfictions que relatam romance entre homensShipp: ato de torcer por determinado casal (real ou não) de personagens ou celebridades
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